Reflexos da Lei de Abuso de Autoridade na esfera municipal

A Lei Federal nº 13.869/2019, popularmente conhecida como Lei de Abuso de Autoridade, passou a vigorar em 3 de janeiro de 2020 e despertou grandes preocupações acerca de seus efeitos em diversos âmbitos da administração pública, em especial nos municípios. Nesse cenário, destaca-se o papel das Guardas Municipais, que a cada dia assumem atribuições mais amplas na segurança pública local. De toda forma, é inegável que a inserção das Guardas na estrutura de segurança pública evoluiu de maneira irreversível, consolidando-se como parte essencial do aparato de proteção à sociedade.

Apesar disso, a aplicação da Lei de Abuso de Autoridade não se limita às Guardas Municipais. O Poder Legislativo e o Poder Executivo — incluindo prefeitos, secretários e demais servidores — também podem incidir em condutas que ensejem responsabilização. O objetivo deste artigo é demonstrar as consequências diretas dessa legislação para os agentes municipais, tanto do Legislativo quanto do Executivo, bem como para a atividade administrativa, cuja prática de atos pode ter efeitos intra partes ou erga omnes, gerando abusos coletivos contra os munícipes em casos de excesso de poder.

De acordo com o art. 1º da Lei 13.869/2019, ela define os crimes de abuso de autoridade cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. Já o art. 2º esclarece quem pode ser sujeito ativo do delito, não excluindo concessionários de serviços públicos que atuem em nome do município, servidores concursados ou não, e até mesmo voluntários ou membros de fundações e entes da administração indireta. Dentro do contexto municipal, o referido artigo destaca especialmente os incisos II e III, referindo-se a membros dos Poderes Legislativo e Executivo, cujo poder de decisão afeta diretamente o administrado.

O parágrafo único do art. 2º firma a amplitude do conceito de agente público para fins de aplicação da lei, abarcando qualquer pessoa que exerça, ainda que temporariamente ou sem remuneração, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade pública. Assim, todos que detêm poder decisório, seja de forma direta ou indireta, podem ser submetidos às regras impostas pela Lei 13.869/2019, pois mesmo um ato administrativo pode impactar a esfera de direitos de cidadãos ou grupos, caracterizando possível abuso.

No âmbito do Poder Legislativo, por exemplo, podem ocorrer abusos na elaboração ou aprovação de leis que beneficiem diretamente uma pessoa ou um grupo específico, ou até mesmo o próprio mandatário. A utilização do cargo para constranger ou coagir indivíduos ou setores, valendo-se da posição de vereador ou assessor parlamentar, também é passível de enquadramento na lei.

Por outro lado, no Poder Executivo, o impacto pode ser ainda mais abrangente, pois envolve uma variedade de atos que atingem diretamente a população. Nesse ponto, a figura do prefeito destaca-se por deter o maior poder decisório no município, tendo competência para editar decretos, portarias e regulamentos, cujos conteúdos podem representar abuso se extrapolarem a finalidade pública ou violarem direitos. Secretários municipais, ao exercerem atribuições de gestão e fiscalização, também devem observar rigorosamente a legalidade, pois a prática de atos excessivos ou desproporcionais pode ensejar responsabilização.

As Guardas Municipais merecem análise específica, pois o texto legal prevê condutas que atingem diretamente a abordagem, prisão ou detenção de indivíduos. O art. 13 proíbe constrangimentos mediante violência, grave ameaça ou redução de capacidade de resistência, vedando ainda a exibição pública do detido, a imposição de situações vexatórias ou de humilhação. O mesmo artigo esclarece que não pode haver exigência de produção de prova contra si mesmo ou contra terceiros. Vale lembrar que o uso de algemas fora das hipóteses previstas em lei e sem necessidade é considerado abuso, assim como gritos, insultos ou quaisquer formas de ofensa à dignidade do detido.

O art. 15 trata do constrangimento àqueles que devem guardar sigilo em razão de função, ministério, ofício ou profissão. Dessa forma, guardas municipais não podem exigir que médicos, psicólogos, sacerdotes ou advogados revelem informações protegidas. Já o art. 16 aponta que o agente público deve identificar-se ao efetuar a prisão ou detenção, sob pena de incorrer em abuso se houver falsa identificação ou omissão. O art. 20 resguarda o direito do preso de se entrevistar reservadamente com seu advogado, impondo ao agente o dever de permitir o contato, ressalvados casos de justa causa.

Outro dispositivo relevante é o art. 22, que tipifica como crime invadir ou adentrar imóvel alheio sem determinação judicial ou fora das hipóteses legais, como flagrante delito, desastre ou prestação de socorro. O agente municipal, ao agir em frações de segundo, pode ver-se em situações delicadas e, caso não haja amparo legal, estará sujeito à responsabilização. O §1º do art. 22, por exemplo, incrimina a conduta de coagir alguém a franquear acesso ao imóvel. Embora o art. 5º, XI, da Constituição Federal autorize a entrada em domicílio em determinadas situações, exige-se cautela para evitar interpretações que caracterizem abuso.

Sobre a inovação artificiosa ou adulteração de local, coisa ou pessoa, o art. 23 estabelece punição para quem altera provas ou induz em erro a apuração dos fatos, o que se reflete não apenas em investigações policiais, mas também em Processos Administrativos Disciplinares. De modo semelhante, o art. 24 trata da prática de coagir funcionários de instituições de saúde a admitir paciente já falecido para mudar o local ou o momento do crime, trazendo riscos também para os agentes municipais que participem de ocorrências envolvendo óbitos.

O art. 25, por sua vez, criminaliza a obtenção de prova por meio manifestamente ilícito em procedimentos de investigação ou fiscalização, incluindo o Processo Administrativo Sancionador. Ademais, o parágrafo único estende a responsabilização a quem utilizar prova sabidamente ilícita, o que demonstra a preocupação do legislador em coibir irregularidades que possam afetar o devido processo legal.

Outro ponto sensível é a instauração de procedimentos sem qualquer indício de crime ou infração administrativa, prevista no art. 27, bem como a persecução infundada de que trata o art. 30, ambos punidos com detenção. Nessa linha, instaurar ou dar prosseguimento a sindicâncias, investigações ou ações penais e civis sem justa causa pode configurar abuso. O art. 31 traz a hipótese de prolongamento injustificado, punindo quem atrasa de forma desmotivada um procedimento, causando prejuízo ao investigado ou fiscalizado.

A questão do acesso aos autos de investigação preliminar, termo circunstanciado, inquérito ou qualquer outro procedimento investigatório é abordada pelo art. 32, que considera crime a negativa de vistas ao interessado ou a seu defensor, salvo peças relativas a diligências em curso e sigilosas. Esse dispositivo também reflete a necessidade de observar a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) e a transparência nos atos da administração.

No art. 33, estabelece-se a proibição de exigir informações ou cumprimento de obrigações sem expresso amparo legal, tipificando como crime a conduta de quem exige algo não previsto na legislação ou deixa de cumprir obrigação legal valendo-se do cargo público. Tais disposições se aplicam, por exemplo, a agentes municipais de fiscalização que atuem fora dos parâmetros estabelecidos em lei ou regulamentação local.

Por fim, o art. 43 acrescenta o art. 7º-B ao Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), tipificando o desrespeito às prerrogativas de advogados como crime. Na prática, isso significa maior proteção ao trabalho de defesa, impondo aos agentes públicos o dever de respeito às garantias profissionais dos defensores em qualquer procedimento administrativo ou judicial.

Em suma, a Lei nº 13.869/2019 reflete diretamente na atuação dos servidores municipais, tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo, exigindo rigor no respeito aos princípios constitucionais da legalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37 da CF). Ademais, realça a importância de fundamentar todos os atos que impliquem restrição de direitos, sob pena de incorrer em crime de abuso de autoridade. Embora se reconheça a complexidade do dia a dia operacional, especialmente na atividade de campo das Guardas Municipais, o legislador buscou equilibrar a proteção dos direitos fundamentais com a repressão dos excessos cometidos por agentes públicos. Dessa forma, cabe à Doutrina e à Jurisprudência interpretarem as disposições em consonância com a Constituição Federal, de modo a assegurar a ordem pública e, ao mesmo tempo, preservar a dignidade e os direitos individuais dos cidadãos.


Autor: Carlos A. C. Vadalá.

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