A usucapião de bem móvel, prevista nos artigos 1.260 e 1.261 do Código Civil, consiste em mecanismo legal que permite ao possuidor adquirir a propriedade quando mantém a coisa de forma mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini. Esse instituto, embora frequentemente relacionado a imóveis, aplica-se aos bens móveis em geral, inclusive veículos abandonados pelo titular original, que deixa de exercer qualquer ato de posse ou demonstra desinteresse em recuperá-los. Assim, evita-se que o bem permaneça indefinidamente sem utilidade, atendendo à função social da posse e conferindo estabilidade jurídica àquele que de fato sustenta a posse.
A usucapião ordinária, disciplinada no artigo 1.260 do Código Civil, exige boa-fé, justo título e posse por 3 (três) anos; ou seja, se o possuidor, amparado em um documento aparentemente legítimo, confiava de boa-fé na aquisição. Já a usucapião extraordinária, prevista no artigo 1.261, dispensa esses requisitos, bastando a posse continuada por 5 (cinco) anos, sem oposição do antigo dono. Em ambos os casos, o decurso do prazo e a inércia do proprietário original refletem uma presumida renúncia ao bem ou evidenciam o abandono, legitimando a aquisição originária pelo possuidor.
O artigo 1.275, inciso III, do Código Civil aponta o abandono como causa de perda da propriedade, reforçando a ideia de que a ausência de qualquer ato de posse ou manifestação do dono favorece a aquisição por terceiros. Na prática, o possuidor passa a exercer os poderes de dono, assumindo custos de guarda e conservação, sem qualquer contestação ou interferência. Essa situação consolida a prescrição aquisitiva quando se verifica o animus domini e a publicidade da posse, não havendo exigência de prévia regularização documental junto a órgãos de trânsito ou afins.
A interversão da posse, regulada pelos artigos 1.203 e 1.208 do Código Civil, desempenha papel decisivo para converter uma condição inicial de mera detenção (quando não há ânimo de dono) em posse ad usucapionem. Esse fenômeno ocorre se o possuidor passa a exteriorizar, de forma inequívoca, sua recusa em reconhecer direitos do antigo proprietário, somada à adoção de atos próprios de proprietário, como a manutenção prolongada, a exposição pública do bem e a inexistência de oposição por terceiros. Em tais hipóteses, consolida-se o animus domini, apto a embasar a usucapião.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconhece reiteradamente a possibilidade de usucapião de veículos cujos donos se mantêm omissos por períodos prolongados. A título exemplificativo, a Apelação Cível nº 1002305-83.2021.8.26.0266, relatada pelo Des. Rodolfo Cesar Milano (julgada em 19/10/2022, 35ª Câmara de Direito Privado), confirmou a aquisição por usucapião extraordinária após mais de cinco anos de posse ininterrupta e pacífica, independentemente da presença de justo título ou boa-fé. Também a Apelação Cível nº 1035680-67.2016.8.26.0002, relatada pelo Des. Milton Carvalho (julgada em 02/03/2021, 36ª Câmara de Direito Privado), declarou cabível a usucapião de veículo abandonado, reconhecendo que o novo possuidor não herda eventuais débitos do antigo titular, em razão do caráter originário da aquisição. Noutro precedente, a Apelação Cível nº 1005161-59.2019.8.26.0114, de relatoria da Des. Claudia Menge (julgada em 22/02/2023, 34ª Câmara de Direito Privado), também validou a possibilidade de regularização do bem por via da prescrição aquisitiva, garantindo ao possuidor a faculdade de transferir o registro junto ao órgão de trânsito.
Tais decisões evidenciam que a falta de licenciamento, as pendências financeiras ou a inexistência de registros prévios não obstam a aquisição por usucapião, uma vez que o título judicial decorrente da prescrição aquisitiva dispensa regularizações prévias e extingue débitos anteriores. O elemento decisivo é a demonstração de posse longa, sem contestação, com publicidade e exercício típico de proprietário. O desinteresse do dono original, seja por abandono efetivo ou inércia duradoura, consolida-se na perda de propriedade em virtude do decurso do tempo.
Em conclusão, a usucapião de bem móvel constitui valioso instrumento de segurança jurídica e função social, assegurando a regularização de bens cujo titular abandona ou ignora completamente sua posse. A publicidade dos atos de domínio, a ausência de oposição e a presença do animus domini formam o arcabouço essencial para que o possuidor ingresse em juízo e obtenha a declaração judicial de propriedade. Dessa forma, promove-se o reconhecimento da situação de fato como situação de direito, garantindo ao possuidor um título legítimo, afastando dívidas pregressas e conferindo destinação útil a bens que, de outra maneira, permaneceriam sem proveito ou controle efetivo.
Autor: Thiago Rodrigues Pianta